Reflexão sobre o direito da paisagem em Salvador
22 de jun. de 2023
Por Tássio Silva Tássio Silva / Thaís Rebouças
A paisagem é história congelada, mas participa da história viva. São as suas formas que realizam, no espaço, as funções sociais.”
Milton Santos, “A natureza do Espaço” (2002)
Um texto compartilha uma similaridade especial com a cidade: ambas são possíveis de serem lidas. O primeiro por meio das frases e parágrafos, a segunda por meio das paisagens no espaço urbano. São elas que, além de caracterizar a identidade visual de um lugar, nos contam, segundo Milton Santos, sobre as dinâmicas sociais, culturais e econômicas da cidade, sobretudo, por serem testemunhas do tempo e acúmulo do resultado histórico que refletem no aqui e agora.
Na contramão da valorização da identidade visual, como tendência atual e crescente nas grandes cidades, como Porto Alegre e Maceió, a instalação de rodas-gigantes em centros históricos, para além da espetacularização desconectada com o entorno, têm sido alvos de críticas e fonte para debates e reflexões sobre o modelo de cidade que está sendo desenhado pelo Poder Público. Há tendência (dessa?) ameaça chegar em Salvador, por meio de recentes sinalizações do Prefeito na imprensa local.
O chefe do Executivo Municipal, desde 2021, tem anunciado que será instalado uma roda-gigante no bairro do Comércio, no Centro de Salvador, visando estimular o turismo na região, mesmo que as prioridades do bairro sejam outras, algumas delas, inclusive, expressas no Plano de Bairro elaborado pela própria prefeitura. Apesar da importância histórica do bairro do Comércio - por sustentar funções portuárias, econômicas e administrativas -, a região tem sido degradada pela ausência de políticas urbanas, habitacionais e sociais e atuação da especulação imobiliária. Nada obstante, na prática, tem-se a potencialização do primeiro e fomento, com incentivos fiscais, do segundo.
Apesar do anúncio, de dois anos antes, no final de 2022 a instalação da Roda-Gigante foi dada como improcedente pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). Diante do tombamento do Conjunto Urbano e Arquitetônico da Cidade Baixa de Salvador, o brinquedo, de 70 metros de altura, ultrapassa a encosta alcança a Cidade Alta, interferindo agressivamente na “relação visual Cidade Baixa/Cidade Alta”, bem como na visibilidade e apreensão dos monumentos no frontispícios, boa parte tombados, individualmente.
O pedido e a negativa da autorização ao IPHAN se justifica porque o Frontispício de Salvador é também patrimônio histórico e natural e chama a atenção para um direito pouco conhecido, mas já reconhecido inclusive pelo Ministério Público da Bahia, que defendeu esse direito numa Ação Civil Pública que contestou a construção do empreendimento Cloc Marina Residence. A tese de direito da paisagem destaca a defesa do que considera bem comum e público as ambiências e paisagens ambientais com características cênicas, morfológicas e ou culturais singulares. Segundo Relatório Técnico que instrui a ACP, “o comprometimento da paisagem do frontispício da Cidade causa não apenas dano a paisagem, mas também à ambiência urbana e às referências culturais e históricas”.
Entretanto, em maio de 2023 o projeto volta a ser anunciado como solução para “o turismo local”, dessa vez com 84 metros de altura. Com isso, o que está em xeque é a descaracterização da paisagem, leituras sobre a história e memória da cidade, ou seja, a perda de um direito comum a todas. Tudo isso para viabilizar um projeto de cidade que não dialoga com as demandas da população e do território. Projetos totalmente desconectados da realidade do presente, como um anacronismo, como dinossauros.
São as pessoas que dão forma e vida aos contextos, como aponta Milton Santos. Essas devem ser o foco e alvo dos investimentos públicos, visando a construção de uma cidade justa e democrática. Em paralelo e em consonância a isso, as paisagens, como direito, precisam ser reconhecidas e valorizadas como característica do que é nosso e só tem aqui. É preciso fazer com que Salvador coloque em cena outras paisagens, conectadas com as culturas, saberes, fazeres das suas gentes que habitam os mais diversos territórios da nossa cidade.